Decodificar letras, símbolos e significados transformou o nosso cérebro e nossa sociedade, e criou algo que não existia quando a nossa espécie surgiu.
Enquanto você lê esta reportagem, ativa circuitos cerebrais que nós, seres humanos, levamos milhares de anos para desenvolver: os da leitura. Decodificar letras, símbolos e significados transformou o nosso cérebro e nossa sociedade, e criou algo que não existia quando a nossa espécie surgiu.
"Nós pensamos na linguagem como algo natural, e deduzimos que a língua escrita é algo natural também. Mas não é, nem um pouco", afirma à BBC News Brasil Maryanne Wolf, cientista cognitiva, professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles e autora de O Cérebro Leitor (editora Contexto).
"E quanto mais você lê, mais esse sistema molda o cérebro, de modo cumulativo. Dá a ele todo um conhecimento, toda uma construção de processos que eu chamo de leitura profunda."No entanto, Wolf adverte que essa habilidade de leitura profunda está sob risco, por causa dos hábitos digitais modernos – como apenas "passar os olhos" em textos online. A seguir, explicamos quatro formas como a leitura alterou a forma como pensamos – e como preservar essas conquistas.
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1 - A 'invenção' da leitura
Maryanne Wolf explica que um cérebro neurotípico já nasce com os circuitos que permitem que nossos olhos enxerguem e que as nossas cordas vocais produzam os sons da fala. Mas ele não nasce com um circuito que permita ler. Esse processo provavelmente começou por volta do ano 3300 a.C., com o povo sumério, na Mesopotâmia, onde hoje fica o Iraque. Os sumérios criaram o sistema cuneiforme, de cunhar símbolos em argila – embora haja debates entre alguns cientistas que os precursores da escrita possam ter sido os egípcios, com seus hieróglifos.
De qualquer modo, decifrar símbolos passou a exigir mais do cérebro do que apenas enxergar. Era preciso associar aquele símbolo a algum objeto, conceito ou emoção, e também a algum som. "Os símbolos de escrita começaram a surgir mais ou menos 6 mil anos atrás. E exigiram uma mudança no cérebro, em que um símbolo visual passou a representar um conceito e ser expressado por linguagem", diz a autora.
Em seu livro, Wolf explica que os cientistas acreditam que os nossos ancestrais "reciclaram" para a leitura circuitos antes usados para o reconhecimento de objetos.Em 1989, um grupo de pesquisadores acompanhou a atividade cerebral de pessoas olhando para uma série de caracteres - alguns deles com significado e outros aleatórios, que não significavam nada em particular.
E quando as pessoas olhavam para os caracteres que tinham significado real - ou seja, eram uma palavra de um idioma -, ativavam-se áreas muito mais amplas da visão, e também células específicas que a nossa espécie desenvolveu para processar o sentido de letras, palavras e sons. E uma única palavra é capaz de despertar no cérebro todo um acervo de conceitos relacionados.
Wolf cita um experimento feito anos atrás pelo cientista cognitivo David Swinney. Os participantes do estudo, quando liam a palavra "bug", em inglês, pensavam não só no significado básico do termo - inseto -, como também em "bugs de informática" e até mesmo no carro Fusca (que em inglês chama Beetle, nome de um inseto).
2 - O idioma que aprendemos impacta áreas diferentes do cérebro
Outra observação de Wolf é de que diferentes idiomas podem impactar o cérebro de modo distinto. Vejamos o caso do chinês, um dos idiomas mais antigos do mundo, escrito no chamado sistema logográfico. Cada ideia ou preposição, por exemplo, é representada por um símbolo, em vez de por um conjunto de letras do alfabeto. Pesquisas indicam que o aprendizado de sistemas logográficos ativa áreas diferentes do cérebro do que o aprendizado de português ou inglês, por exemplo. Em particular as regiões envolvidas na memória visual e associação visual.
Uma das formas como os cientistas descobriram isso foi a partir de um estudo pioneiro sobre o bilinguismo na década de 1930. Nele, pesquisadores chineses estudaram o caso de um homem que sofrera um derrame cerebral grave. No entanto, o derrame impactou apenas a capacidade do paciente de ler chinês. O conhecimento do idioma inglês continuou intacto. "É um exemplo de como os circuitos do cérebro refletem as demandas do idioma chinês, que exige mais memória visual e mais processamento visual daqueles belos e intrincados símbolos", afirma Maryanne Wolf.
3 - Repertório desde a primeira infância
Fotos: Reprodução/Google
Inclusive, esse aprendizado tão sofisticado começa antes da alfabetização formal: já quando os bebês ouvem história no colo dos adultos ou veem livros com figuras – mesmo que ainda não consigam decifrar as letras. Para Wolf, isso já cria o terreno para a criança desenvolver habilidades emocionais importantes, como a empatia e a capacidade de se colocar no lugar de um personagem da história.
Em contrapartida, a negligência à leitura tem um efeito contrário - e bastante prejudicial - ao cérebro infantil. Um famoso estudo americano de 1995 concluiu que crianças de lares pobres, sem acesso à leitura e a estímulos, terão escutado, até os 3 anos de idade, 30 milhões de palavras a menos do que uma criança estimulada e de classe média.
Hoje já existem outras pesquisas contestando algumas conclusões desse estudo – dizendo que não é uma mera questão de nível socioeconômico, e que tais conclusões podem estigmatizar crianças mais pobres. Mas um ponto-chave continua a valer: com menos repertório, a tendência é que a criança já comece a vida acadêmica em desvantagem.
Fonte: com informações BBC News
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